quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Espera

Detesta horas incumpridas. É, em si mesmo, um porto de relógio, com o nariz largo e autuante, ainda que recolhido no morno habitáculo do carro. Aguarda-a, entre fitares em objectos em movimento; nos intervalos, fixa o olhar em objectos imóveis, um deles, um prédio. Aí, enquanto não corre gesto algum na rua, brinca ao passado e imagina a sua história.

Hoje, perco-me num imenso prédio altivo de oito andares. Altivo, pois outrora nascido entre duas apertadas ruelas, onde o escape atmosférico sempre se mostrou nulo ou ínfimo (foram já três, nos últimos nove meses, os casos de internamento hospitalar motivados pela deslocação do pescoço, dito doutra forma, em inexistente rigor médico, torcicólogos, todos eles motivados pela louca tentativa de defrontar em olhar directo o céu que cobre ambas as ruelas). Fechem o espanto por tão arrojada e alegada revolucionária forma de ordenamento imobiliário, afinal eu escrevo sobre um espaço do Portugal urbano, nascido no final da década de oitenta, início de noventa, tempos de triste espaçamento urbano-aéreo.

Ainda assim, pese já a quase vintena de anos, este prédio exibie menos vulgares traços estruturais, como um túnel de acesso, no rés-do-chão, às traseiras, mesmo no centro da sua estrutura e, talvez por isso, suplementar apoio em vários pilares. Assim, em fronte a ele, cabe registar a existência de dezasseis daqueles, em azulejo castanho liso forrados. Gosto ainda das encobertas áreas criadas nas margens do prédio, fruto do espaço entre tais pilares e a entrada efectiva no seu interior.

Nas costas dele, uma imensa barriga saída do centro da estrutura. Contarei cerca de dez metros por dez metros de espaço, multiplicados por oito andares, erguidos no ar, sem qualquer apoio no chão, apenas engavetados no tronco principal do prédio. A um leigo em engenharia (e bem sei que esta estará longe de ser uma irreverência arquitectónica ou das maravilhas do cálculo rigoroso), não deixa de causar um certo arrepiar e fomentar de histórias trágicas de derrocada, relativas àqueles dez por dez.

Não se estranhe por isso que, algures entre o meu pensamento, me ocorresse um combalido trabalhador, em virtude de queda do, hoje, terceiro andar, à altura, futuro terceiro andar. Naquele tempo, lembro os mais incautos, no que à memória tange, em matéria de segurança na construção civil, nem uma fina barra de madeira ou metal ladeava os andaimes, sendo inúmeras as estúpidas quedas, consequenciadas com a morte ou graves incapacidades físicas. Valha hoje, ao menos, o algum Estado Social em matéria de Segurança no Trabalho.

Em som de despertador matinal, irrompe defronte ao meu carro um imenso rugido motorizado, anunciando um potente motor de quatro mil de cilindrada ou, porventura, algo mais… Erro, erro crasso de amador ouvido: era uma pequena motorizada, mundanamente denominada como um secador, ali, naquela duas rodas, cujo som seria potenciado por uma qualquer alteração, introduzida por um qualquer alguém… Do gozo perdido, o som calmo e urbano recuperado, ouvindo-se o normal correr de rodas e respectivos chassis de carro sobre o asfalto, do outro lado do prédio, na rua principal.

Voltei ao imaginário do prédio, ou melhor, deixei-o de vez e pensei mais vasto, arrogando-me dum qualquer dom de reflexão. Sendo a vida em si mesmo um momento inacabado e aguardando o decurso do futuro, assunto bem mais relevado em matéria de dirigismo estadual, cumpre sempre evoluir, as mais das vezes, com os mesmos recursos humanos e materiais: é a saturação da eficiência. Isto porque Portugal é hoje um país bem mais prudente em Segurança no Trabalho, com as estatísticas a confirmarem-no, retirando Portugal do fim da lista e aproximando-o dos melhores paradigmas nesta matéria.

A querer, pois, a manutenção desta escalada.

Sem comentários: